Era uma manhã de setembro de 1950. Para ser mais preciso, dia sete daquele mês.
A tropa representativa da guarnição militar do Recife dispunha-se ao longo de ruas e avenidas centrais, prolongando-se até bairros mais próximos.
O povo apinhava-se em toda a extensão da Av. Conde da Boa Vista, onde se situava o palanque das autoridades e se distribuía pela ponte Maurício de Nassau e Av. Guararapes, aguardando pacientemente o início do tradicional desfile do “Sete de Setembro”, em homenagem ao memorável evento da Independência do Brasil.
O sol às primeiras horas da manhã já se manifestava com todo o seu brilho, estampado contra o fundo azul do céu nordestino. Parecia cumprir um tácito acordo com o povo da terra que, por tradição, inaugura naquele dia a estação balneária.
Nove horas. Um estridente toque de clarim chama à atenção a tropa, que se acha “à vontade”. Todos se perfilam e, atentos, aguardam os toques de comando.
Imprensado entre o cordão de isolamento e o público que se acotovelava, eu assistia alerta, a todo movimento, postado nas proximidades do palanque.
Passados instantes, com a tropa em “ombro-arma”, seu comandante, em pé sobre o jipe, defrontando o palanque, abate energicamente sua espada, enquanto que, em voz alta e firme, solicita à maior autoridade ali presente, autorização para proceder ao desfile.
Finalmente tem início o tão esperado momento: O deslocamento da tropa!
O ribombar dos tambores, acompanhado pelo troar da marcha cadenciada dos soldados, fazia eco em nossos corações. Aquele som rítmico e ensurdecedor parecia despertar em todos o guerreiro que dormita nas profundezas do eu.
Passados os primeiros grupamentos, surge um contingente “sui generis”: Homens, já de meia-idade, vestidos de paletó e gravata, boina verde na cabeça, marchavam garbosamente à cadência da banda. Eram os integrantes da gloriosa Força Expedicionária Brasileira – aqueles heróis anônimos, que um dia, desprezando o conforto e a segurança do lar, partiram para o campo de batalha, em terras do continente europeu, a fim de garantir a defesa de nossas instituições, assegurar a soberania de nossa Pátria e a paz e tranqüilidade de nossa gente.
Em dado momento, minha atenção é desviada para o gesto de um cidadão, ao meu lado, que levava aos olhos um lenço para enxugar duas lágrimas cristalinas que lhe escorriam pela face. Tal gesto já fora realizado momentos antes ao passar a Bandeira Nacional.
Eu não imaginava naquela época como podia uma pessoa se emocionar de tal forma, a simples rufar de tambores ou desfilar de tropa.
Fiquei tão intrigado com o comportamento daquele homem que me vi impelido a dirigirlhe a palavra após o desfile:
- Lindo desfile, não? - falei eu.
- Não apenas lindo, mas profundamente emocionante. – retrucou
Começamos a caminhar. Percebi que claudicava da perna esquerda.
Aproveitei a deixa e fui direto ao assunto:
- A propósito – disse – eu notei que o amigo se emocionou bastante com o desfile, a ponto de quase chorar. Algum motivo especial?
- Sim, meu jovem. Eu deveria estar participando desse desfile, como meus companheiros expedicionários, não fosse a infelicidade de ter-me tornado um mutilado de guerra.
Compreendi de imediato a razão porque mancava.
- Nos primeiros dias de quarenta e cinco, fazendo parte de um dos últimos escalões da FEB, parti eu, do porto de Natal, rumo ao “front”, deixando atrás de mim, amigos, Pátria e família. A saudade e a incerteza de voltar um dia a esta terra me sufocavam.
Em março daquele ano, já me encontrava em pleno campo de batalha, no Vale do Pó, na Itália. Foi ali que presenciei o episódio mais tocante da minha vida!
Eu era 1º Tenente, comandante de um dos pelotões de uma Companhia de Fuzileiros. Procurávamos avançar cautelosamente pelo terreno, aproveitando a proteção das pequenas elevações e das moitas de árvores rasteiras, progredindo, ora por lance, ora homem a homem.
Em dado momento, ao atravessar uma clareira, um Tenente, comandante de outro pelotão, é surpreendido por uma rajada de metralhadora do inimigo que nos espreitava do outro lado do terreno. Cai ao solo pesadamente e deixa saltar das mãos a Bandeira do Brasil com que já se preparava para assinalar o terreno conquistado.
Deu-se, então, o imprevisto. Um soldado de meu pelotão, metralhadora em punho, lança-se em direção do companheiro estendido. Caminhando agachado, em zig-zag, agilmente avançava e varria com rajadas o terreno de onde partiu o tiro. Alcança a bandeira e, quando a eleva do solo, uma explosão de granada faz-se ouvir. Seu corpo baqueia. Com esforço põe a arma a “tira-colo” e envolve o corpo com a bandeira, como querendo evitar que caísse em mãos do inimigo. Cai ao solo fulminado. Um fio de sangue escorre-lhe tenuemente pelo canto dos lábios.
Aquele episódio fez-me entender tudo o que já ouvira falar sobre civismo e patriotismo.
Compreendi, meu jovem, o quanto pode significar para o homem, a sua Pátria, a ponto de sacrificar a própria vida pela Bandeira que a simboliza.
Confesso que à partir daquele dia comecei a apreciar e dar sentido às cores da nossa Bandeira, suas estrelas e tudo que a constitui.
Ao contemplá-la, visualizo, com toda nitidez, o azul do nosso céu, as riquezas inexauríveis de nosso solo, e o vigor e pujança de nossas matas.
O conjunto de estrelas, tendo por fundo o círculo azul da bandeira, faz-me reviver o pedaço de céu que cobria o Rio de Janeiro no dia 15 de novembro de 1889, quando um outro bravo como aquele que tombara em campo de batalha, tomando para si as aspirações do povo brasileiro, proclama a República, cortando definitivamente as peias que nos prendiam a Portugal.
O dístico “Ordem e Progresso” tem para mim não o sabor da vã filosofia, mas de um apelo da minha Pátria para o trabalho ordenado, assegurando assim, o sucesso individual e o progresso geral da Nação.
Como garantia do sucesso, ela nos apresenta suas riquezas, ali simbolizadas pelo verde de nossas matas e o amarelo de nossos minerais.
- Meu jovem – finalizou – não espere, como eu, pelo evento terrível de uma guerra, nem pelo sacrifício da vida de um irmão, para amar com todo fervor essa Pátria tão pródiga. Que esse amor seja tão sincero que te faça defendê-la e honrá-la em seus símbolos – sua Bandeira, seu Hino e suas Armas – e , se preciso for, na presença do inimigo, defende-os com o sacrifício de tua própria vida!
José Paulo Pereira Filho
Ten. Cel. Ref. da Aeronáutica